Dia de chuva

Gosto de dias chuvosos. Desses em que se acorda e logo se é ninado pelo doce acalento da água na janela; desses que parecem , não importa a hora, ser sempre domingo de manhã. O canto da chuva é um canto doce que colore todo o dia em leves e misteriosos tons de azul e cinza – e outras cores. Doce e triste. Igual ao embalo da voz materna nos ouvidos da criança. Igual à esperança que nos consola em tempos escuros.

Chuva azul claro

Mas o canto da chuva é um canto que possui diferentes tons e andamentos. Tem a chuva azul claro e lenta, que parece se arrastar pelo tempo e pelo espaço, perpetuando o vício da preguiça e a penitência do tédio. É a chuva que nos faz passar, passivos, toda uma hora, uma tarde, um dia, uma semana. A chuva azul é a chuva de quem vê a vida passar – pela janela, jamais da rua. Tão logo acaba, já parece que não existiu. Se não fosse o brilho fosco do asfalto molhado, ela nem pareceria ter acontecido.

O negro boçal asfixia a cidade

Também há a chuva negra, boçal, pesada como um peito que agoniza e acelerada como uma taquicardia. Essa também pinta o ar, mas da cor dos nossos maiores desesperos. Quando cai, não há prédio que não trema sob sua grandiloqüência. Nem homens. É sob o pesado escuro asfixiante das nuvens e os imperiosos brados dos trovões que são varridos a prepotência e o orgulho humanos. Em enxurrada. E, em dias assim, tudo quanto se quer é um abrigo no caloroso teto dos braços de alguém. Descobrimo-nos, pois, crianças.

Os mais belos, românticos - e suaves - atos de amor.

 

Existe, também, a chuva rosa. É aquela que cai lenta e suavemente e é sempre adoçada pelo doce perfume de cabelo de mulher. É essa a chuva gostosa que ornamenta os mais belos e apaixonados atos de amor. Por outro lado, existe a chuva vermelha, intensa, mas delicada. Feroz, mas carinhosa. É a chuva que aquece os beijos mais ardentes e as carícias mais ousadas. É chuva de verão. Chega furtiva, acontece estrondosa e sai à francesa. Sempre deixa marcas, conseqüências. Seqüelas. Fenômeno curioso é quando caem juntas a chuva rosa e a vermelha. O andamento de sua canção torna-se difícil de metrificar, sua intensidade parece jamais ser uniforme. E o tempo se torna algo irrelevante. Sua cor é única. Não se confunde nem com o vermelho nem com o rosa, mas possui e engloba os dois. E ainda é mais. A ela, chama-se amor.

As chuvas não colorem apenas o ar. Têm, também, aquelas que colorem os olhos. É o caso da verde e da lilás. Suas tintas têm algo a mais que as faz penetrar além da barreira das sensações. São as chuvas que preenchem os olhos com a cor que eles desejam ver. Mais. Com a que lhes falta. Contudo, enquanto uma é esperada com rezas e lágrimas, lágrimas e rezas são usadas para afastar a outra. É que verde é a chuva que inunda as terras e os olhos do campo com a inconfundível e reconfortante aquarela da esperança. Já a lilás é a chuva que vem homenagear aquele que é velado e consolar os que partilham da dor da morte ainda em vida. Amiga indesejável. No entanto, apesar de distintas, ambas trazem uma característica em comum: suas águas não secam, mesmo após o fim do temporal.

Dentro de cada gota, há um arco-íris

Mas a grande beleza da chuva está no fato de que ela adota uma cor diferente para cada olho que a contempla. A chuva azul claro que contemplo da varanda pode ser, a alguns quarteirões daqui, lilás, após um triste telefonema, passando, ainda, por um forte vermelho em torno de um casal que se beija encostado em um poste na esquina. A chuva tem sempre uma cor, mas, também, tem todas. Ao mesmo tempo. Mais do que azul, rosa, vermelha, negra ou lilás, a chuva é branca. E, mais do que branca, a chuva traz, em cada gota, o infinito arco-íris que se chama vida.

“Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha.”

-Millôr Fernandes

Sobre André Felipe Souza Cecílio

"Não sou nada Nunca serei nada Não posso querer ser nada. À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo" - F. Pessoa
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4 respostas para Dia de chuva

  1. André Kelles disse:

    Um dos melhores contos que já li na vida. E independente de ser conto, isso mostrou pra mim demais como você é um artista que merece muita admiracao. O tipo de coisa que eu explico com teses científicas e de uma forma totalmente distinta, você faz de forma se non igual até superior, mas non com argumentos científicos. Você pinta diretamente na alma dos outros utilizando palavras. Meus parabéns mais uma vez, me surpreendeu muito.

  2. André, fiquei bastante contente ao ler seu comentário. Não apenas pelo grande elogio feito, mas, também, pelo fato de ele ter saído de alguém com quem eu, sempre que o encontro – mesmo que poucas vezes -, acabo vivenciando diálogos bastante proveitosos. E a arte é isso aí: através do lúdico, nos produz o lúcido. Eu gosto de dizer que a arte é uma ciência que gosta de fingir que não a é.
    Grande abraço e, mais uma vez, obrigado pelo comentário!

  3. Julia Pardini disse:

    A chuva é pedaço de céu condensado, é possível haver coisa mais mágica que isso?
    Sua crônica solta faíscas de cores e me fez arrepiar completamente.
    Parabéns, de novo.
    Beijos

  4. Julia Birchal disse:

    Adorei o texto!!
    Assim a gente entende por que em filme sempre chove para se criar um clima… ;D
    Mas sério, continue aproveitando todos seus momentos de inspiração, como fez lá no sítio. Assim você vai longe!

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