A sala era grande. As paredes, muito brancas, ostentavam belos quadros, prateleiras bem-dispostas, e mesmo as sombras que nelas dançavam a partir da luz suave das lâmpadas no teto de gesso pareciam ter sido cuidadosamente calculadas para formarem desenhos precisamente abstratos. Roubando parte do espaço que era das sombras, estava um sofá. Vermelho, aveludado. Vermelho o suficiente para ser sedutor e aveludado o suficiente para ser maduro. Ela se encontrava ali, sentada. Quieta. A televisão à sua frente estava ligada. Passa um jogo de futebol, talvez. Ela não tinha certeza. Seu olhar, por mais que estivesse na direção da tela, ia além, muito além. Era como se ela estivesse ali meramente por acaso. Era uma das sombras que dançavam na parede que, sem querer, acabou escapulindo para fora da brancura e foi parar ali no sofá. Era, talvez. Era talvez.
Ele entrara para buscar algo. A carteira? Não, as chaves. Ou era um retrato de família que ele queria mostrar? Ou talvez outros milhões de coisas. Ela não saberia. Estava um tanto quanto dispersa. Era bem verdade que ela vinha sendo assim nos últimos tempos. Dispersa. Não que estivesse desanimada, muito antes pelo contrário. Era só que, de quando em quando, batia um vazio esquisito, desses que chegam de dentro pra fora, e ela se dispersava por alguns instantes. Um frio que lhe tangia o rosto quando ela tentava se decidir, no meio de rua, se virava à esquerda ou à direita, se seguia em frente ou se voltava atrás. Ah, era isso! A blusa de frio! Ele fora buscar uma blusa de frio. Afinal, entrava um vento um tanto gelado pela janela do outro lado da sala.
Esfriara de fato. Ela, no sofá, sentia o corpo estremecer. E sua blusa ficara no carro. Justo agora! Lá de dentro, não se ouvia muita coisa além do ruído de portas e gavetas de armário se abrindo e fechando. Ele ainda demoraria alguns minutos. Pela janela aberta entrava, cada vez mais, o vento frio. Ela estremecia. Levantou-se. O frio a incomodava. Por um momento, pensou em ir atrás dele, no quarto. Iria ajudá-lo a encontrar a tal blusa, e, caso não a achasse, se faria de uma para ele, cobrindo-lhe o dorso, os braços, o corpo. Os problemas do frio e da blusa se resolveriam. Mas não, não poderia fazer isso. Ela tinha que resolver o problema do frio por ela mesma, não pelo calor alheio. Decidiu voltar ao carro e pegar sua própria blusa, que não deveria ter ficado lá. Assim, ela se aqueceria sem depender dele, que poderia, muito bem, não aceitar o seu corpo como agasalho naquele momento. Sem falar que, mesmo que os dois se aquecessem, logo chegaria o momento em que teriam de se desvestir um do outro, e o frio tornaria a atacar, talvez, com força redobrada. Buscar a própria blusa era uma atitude mais sensata, concluiu. Nova brisa entrou pela janela, fazendo-a arrepiar. E pensar. Buscar a blusa no carro aliviaria, sim, a sua sensação de frio, porém o vento continuaria a circular, gelado, na sala onde ela estava. A blusa seria, então, uma medida meramente paliativa. Uma espécie de enganação que ela fazia ao frio. Mas ele continuaria a existir ali, esperando o momento em que, descuidadamente, ela retiraria a blusa ou a hora certa para aumentar de intensidade, vencendo, inclusive, o agasalho. A blusa, por mais aconchegante que fosse, não venceria jamais o frio da sala. Apenas o esconderia das sensações do corpo.
Restara, pois, apenas uma opção: fechar a janela. Aí, sim, o frio deixaria de existir na sala. Claro que, do lado de fora, ele ainda estaria forte. Mas o frio em si é inerente à noite, e mesmo ao mundo. É impossível fazê-lo deixar de existir da janela pra fora. Mas bani-lo da sala, do quarto, de casa, isso, sim, é possível. Mais que isso: necessário.
Mas, quando ela se pôs de frente para a janela, seu corpo parou. Seus braços se imobilizaram. Suas pernas endureceram. O rosto manteve-se imóvel, como se congelado. Mas não era o frio. Era algo diferente. Nunca antes ela estivera diante de um espetáculo tão mórbido e tão fantasticamente maravilhoso ao mesmo tempo quanto aquele que se revelava para ela a partir da janela. O apartamento dele ficava no oitava andar, bem no centro da cidade. Justo no Centro, aonde tantas vezes ela foi, apressada, resolver isso ou aquilo. No Centro, feio e movimentado, que lhe causava asfixia sempre que por ali ela passava. No Centro, onde a multidão a engolia e a transformava em uma pequena formiga tentando não ser pisoteada pelos sapatos furiosos que golpeavam o concreto. Mas o Centro – aquele Centro horripilante –, dali der cima, mostrava-se outro. A noite fazia tombar sobre as ruas e as fachadas imundas do dia um ar quase místico de mistério e ebriedade. A multidão fagocitante do meio da tarde dava lugar a uns poucos bêbados e maltrapilhos, que caminhavam errantes em passos trôpegos ou se desmontavam sobre meio-feios e soleiras com a beleza dura e crua de sua poesia.
As ensurdecedoras buzinas do meio-dia foram trocadas pelo som longínquo das muitas vozes aos risos, quase aos gritos, que emanavam das dezenas de botecos multiplicados pelas esquinas e ecoavam de parede em parede, juntando-se àquelas vindas das salas de estar dos muitos apartamentos dos prédios que se erguiam como árvores das ruas, até chegar à janela onde ela estava, ainda atônita. Seus olhos piscavam pouco. Não que aquela realidade lhe fosse completamente desconhecida. Mas, de uma forma muito estranha, essa realidade, ali, da janela do oitavo andar de um prédio no detestável Centro da cidade, parecia, pela primeira vez, mais real. De uma maneira que ela ainda não compreendia bem, a vida urbana – não apenas no sentido de vida que há na cidade, mas no da vida da própria cidade – parecia ter escapado das páginas dos mais diversos livros de literatura, das crônicas dos jornais, dos scripts de filmes ou mesmo da conversa dislexa de poeta de rua e resolvido se apresentar ali, inteira, condensada, nua diante de seus olhos fascinados. E veio de forma tão absurdamente arrebatadora que, se antes ela pretendia simplesmente fechar a janela para privar o frio à noite na rua, agora ela se aproximava passo a passo, à medida que seus pés retomavam os movimentos após o choque, da janela, sempre aberta.
Com movimentos lentos, ela se debruçou no parapeito da janela e colocou sua cabeça para fora do apartamento. Pela primeira vez, veio-lhe a consciência do quão alto ela estava em relação às pessoas nas ruas, pequenos pontinhos, agora. Elas, inclusive, notou, não usavam roupas de frio lá embaixo. E mesmo ela, aos poucos, ia deixando de sentir frio. Apenas uma leve coceira acometia-lhe as costas, mas nada demais.
Contudo, foi quando olhou para o céu que seu corpo tornou a se estremecer – dessa vez, não de frio, mas de um êxtase que ela não sabia explicar. As estrelas, tão presentes em outros céus, ou, pelo menos, no que ela tinha em mente, haviam despencado de seus altares para invadir os milhões de casas e apartamentos que salpicavam iluminados na escuridão, deixando o céu completamente nu em seu pequeno espaço apertado entre os prédios sempre imensos que lhe invadiam os domínios. A noite, sem espaço para ser no ornamento, invadira as casas das pessoas, e elas, sem que se dessem conta, a recebiam com hospitalidade e lá a cultivava. E, com o tempo, a noite crescia nos lares, onde, para espanto ainda maior dos olhos da moça, as pessoas se cobriam com cobertores e com roupas de frio. E todas, ou a grande maioria delas, estavam com as janelas da casa fechadas.
Nesse instante, ele retornou à sala, agora vestido com uma pesada blusa de moletom. Visivelmente estava com frio. Estranhando o fato de ela estar na janela, pediu-a que a fechasse. Mas ela, por sua vez, não sentia mais frio. Pelo contrário, agora o tempo lhe estava agradável como nunca. E, fitando-o bem em seus olhos, ela percebeu que o frio que ele e todas as outras pessoas fechadas em seus apartamentos sentiam – e com o qual ela própria sofrera havia pouco – era, sim, o frio inerente da noite. Contudo, não era o da noite que se abria para aquele mundo quase mágico de tão real ao qual ela assistira da janela; era o da noite que se instalava dentro de cada casa, a noite que a fazia se camuflar em meio às sombras que na parede branca dançavam.
Ele veio lhe abraçar. Ela, porém, se afastou, sempre lhe sorrindo com compaixão. Ele ainda sentia frio e logo pediria para fechar a janela. Mas ela, ao contrário, queria a janela aberta para que fosse possível saltar para a noite agradável que o mundo além-apartamento oferecia. Ela precisava disso. Não mais queria se sentir uma das sombras da parede enquanto passava um jogo de futebol qualquer na televisão. Não queria vencer o frio através de pequenas ilusões criadas, como a blusa e o ato de fechar a janela. Ela queria era sentir o vento que soprava do lado de fora, onde a vida, estranha e rude, mas pulsante da cidade, convidava-lhe para longos passeios e conversas. Ela queria ler a poesia concreta das pessoas que, na rua, transitavam sem nenhuma proteção contra o frio, porque não o sentiam mais. Ela queria voar.
Afastou-se, então, lentamente dele até ficar de costas para a janela e para o mundo que se abria a partir dela. Após um derradeiro sorriso, sempre terno, virou-se de costas, revelando, para a surpresa e o espanto do confuso rapaz, um belo par de asas brancas que lhe nasciam às costas no ponto que havia pouco coçava. As plumas cresceram como flores e logo se mostraram magistrais. Então, ela subiu no parapeito da janela e, em um movimento gracioso, diametralmente oposto aos que ela produzia quando sentada no sofá, com frio, saltou para um voo em direção ao céu vazio da noite, livre como nunca.